sexta-feira, 28 de agosto de 2020

RITOS FÚNEBRES

 


História e Cultura: Ritos Fúnebres
Mam’etu Nibojí(*)
São, junto com os ritos de puberdade, as cerimônias religiosas e os ritos melhor observados e solenizados da sociedade bantu. Como ritos de iniciação, estão cheio de conteúdo religioso, aparato litúrgico e participação comunitária.
Nos ritos fúnebres, nos quais, sem desculpa, devem participar todos os familiares aos quais se junta a comunidade, os bantu patenteiam as suas raízes culturais, fundamentos filosóficos, “dogmas” religiosos e celebram com solenidade o mistério da vida participativa

Nenhum outro rito chega a atingir a sua transcendência. Caracterizam as suas crenças e consolidam um dos valores religiosos mais preciosos: a certeza da sobrevivência do homem no além-túmulo.

Pelo nascimento, o bantu “passou” a este mundo e pelos ritos de puberdade à sociedade. Pelos ritos fúnebres se restabelece a comunhão que lhe assegura a sobrevivência.

Consideram o defunto como um ser em devir, um projeto, que deve chegar à plenitude, à realização definitiva de antepassado. Encerram tal casualidade mística, que se convertem na única ponte de passagem entre os dois mundos.

Se se realizarem segundo a tradição e o desejo dos antepassados, o defunto chegará ao seu destino transformado na sua realidade existencial, já que se opera uma mutação ôntica.

Pelo contrário, se se realizarem com descuido ou forem deformados, o defunto esquecido vagueará sem destino, desgraçado, e o olvido dos seus acarreta desprezos e terríveis vinganças para os vivos. Converte-se num perigo permanente e pode ocasionar males.

Estes ritos, em definitivo, são um culto à vida, o tributo mais solene que o bantu lhe rende, porque assegura vida constante ao membro que “passou” e enriquece a sua comunidade. São celebrações  solenes do duplo nascimento para a vida mais rica, individual e comunitária.Como exceção, parece que certos grupos bantu camitizados, porque desejam apropriar-se da força vital dum defunto e evitar as suas possíveis cóleras, “comem o defunto em comum na noite dos funerais, depois queimam os ossos. Apropriam-se assim das virtudes do morto e asseguram, pelo seu desaparecimento, que não voltará a inquietá-los”.

Só se “morre” verdadeiramente quando se realizaram os ritos segundo a tradição e a comunidade tem a certeza de que o defunto foi recebido pela comunidade dos antepassados. O defunto fica naturalizado no além-túmulo, integra-se na comunidade dos antepassados pela ação eficaz dos vivos que o situam no seu lugar, o “fixam” evitando que fique vagabundo e despeitado.

A solenidade dos ritos está em proporção com o prestígio social e, sobretudo, com a influência vital do defunto. Os Chefes merecem honras especiais que se revestem da maior solenidade, com a reunião da comunidade. Assim conservam o seu estatus social no outro mundo e não guardam ressentimentos contra as suas comunidades que, por outro lado, desejam prestigiar-se com pomposas festas. As comidas, bebidas e danças adquirem tal relevo, que não há festa que as supere. Vi, nestas ocasiões, sacrificar até quinze bois! As festas poderão prolongar-se por um mês se o Chefe for importante.

Está bastante espalhado o costume de deixar corromper o cadáver do Chefe até que a cabeça se desprenda do tronco. O crânio deve ficar para o herdeiro como feitiço protetor. Às vezes arrancam-lhe as unhas para fabricar poderosos feitiços ou manter viva a sua presença, já que a sua personalidade se prolonga até aí.

O luto pelo Chefe pode durar várias semanas e obriga a todos. O trabalho é proibido. Nalgumas partes a infração castigava-se com a morte. Os que morriam durante o luto não podiam ser enterrados. Os escravos não tinham honras fúnebres visto que a sua nula influência social não os tornava temidos nem havia interesse algum em os prestigiar como antepassados.

A infâmia de certas enfermidades ou a brutalidade do rompimento da vida não oferecem garantias duma ação benéfica. Além disso, seria um insulto aos antepassados. Assim, são excluídos do grupos dos antepassados os leprosos, os que morrem de acidentes, os suicidas, os tarados psíquicos, os epiléticos e os celibatários. As crianças, sobretudo se ainda não foram “chamadas”, e os jovens recebem honras muito mais simples, e a comunidade não precisa de lhes prestar culto. Pela sua imaturidade e pouca influência vital não preocupam.

Os que violaram com gravidade a ética comunitária, criminosos, ladrões, vítimas de ordálios, inimigos públicos e, sobretudo os feiticeiros confessos ou acusados, não recebem honras fúnebres. A sociedade condiciona a honra de antepassado ao comportamento ético.

Logo depois de morrer, enterram os feiticeiros, quase sempre mutilados (partindo-lhes as pernas, por exemplo) para que não voltem, ou abandonem-nos aos animais, ou queimam-nos e dispersam as suas cinzas ou lançam-nas à água.

Há grupos que crêem que os condenados por feitiçaria se revestem no além e um corpo insignificante, repugnante, com um cheiro nauseabundo e com cabeleira encarnada. Levam uma vida errante por regatos e mananciais, encarnam em bestas ou em gatos(por isso rejeitam este animal) e comem carne humana. Castigados a não participar na vida dos seus parentes, dedicam-se a transtornar o ritmo de vida individual e comunitário.

Logo que uma pessoa morre, os seus familiares começam a chorar, a gritar e a dançar sem cessar, com um ritmo cadenciado e monótono. Lamentam a sua perda, chamam-no pelo seu nome, agradecem os seus favores, exaltam as suas virtudes, amaldiçoam o causador da morte e desejam a felicidade ao defunto. Os parentes e amigos acompanham a gritaria com gestos, contorções e danças. Assim demonstram aos antepassados a bondade do falecido, que procuram contentar para que não regresse carregado de influência nefastas. As festas, além disso, entretêm e dão coragem ao defunto enquanto espera a sua transformação em antepassado.

Lavam o cadáver, vestem-lhe as melhores roupas, perfumam-no ou besuntam-no com óleo de palma. Alguns grupos, depois de o desnudar e antes que lhe chegue a rigidez, colocam-no na posição em que deve ser enterrado: sentado de cócoras, com os braços sobre o peito. Cobrem-no com um pano, manto ou pele de boi e fica sentado numa cadeira ou deitado numa esteira. Assim preside às festas. Os familiares e amigos passam pela sua frente a saudá-lo antes de participar dos ritos.

Logo que uma pessoa morre, saem os emissários a comunicar a notícia à parentela. Todos têm de ser avisados ainda que se encontrem distantes. É que o parente que não vai aos ritos pode ser acusado da feitiçaria causadora da morte. Além disso, é um dos momentos em que mais se acentua o sentimento de solidariedade comunitária já que colaboram com o parente para que encontre paz.Mesmo que trabalhem na cidade, deixam as obrigações e deslocam-se as suas aldeias. Só circunstâncias extremas podem impedir a participação nas festas fúnebres dum familiar.

As cerimônias duram dias. O cadáver costuma chegar a decompor-se. Abundam a comida e a bebida. Matam bois, cabras, porcos e galinhas. Cada familiar contribui com algum presente. As mulheres preparam as bebidas tradicionais, os instrumentos de música arrancam e a dança começa.

Comendo e bebendo, conversando e dançando, passam vários dias. São as grandes festas da sociedade bantu. E como a mortalidade é grande e a parentela extensa, encontramos o bantu em freqüentes festas.

Não se esquecem de derramar um pouco de sangue das vítimas ao redor do cadáver para que participe também, ou com ele aspergem as paredes da casa para mostrar ao defunto e aos antepassados que os sacrifícios cruentos são propiciatórios e impetratórios. De vez em quando, um dos parentes chega junto do cadáver e oferece-lhe um bocado ou um gole que entorna a seus pés ou lhe introduz na boca. Estas comidas e bebidas tentam diminuir a tristeza do morto para que se conforme com a mudança operada.

Suspeitamos, também, que estes sacrifícios de vítimas animais encerram um conteúdo sagrado, sacrifical e inclusive de aliança, que hoje se perdeu ou que não conseguimos captar. A dança e a alegria exteriorizam o prazer da participação conseguida “mistericamente”. Assim, mundo invisível e visível fundem-se na mais eficaz comunhão e o defunto honrado torna-se definitivamente comungante-participante com os dois mundos.

A maioria dos grupos sacrificam animais, sobretudo bovinos, somente nestas festas. Embora precisam de proteínas e sendo o bantu um apreciador incansável de carne, reservam os seus animais para os alambramentos e para os sacrifícios propiciatórios. Os ritos fúnebres, pela abundância de animais mortos, desempenham uma missão compensadora do desequilíbrio alimentício e da errada dietética.

Estes ritos terminam com uma refeição que consolida a familiaridade. Decorre no meio de muita alegria porque o defunto já está satisfeito, em companhia dos seus antepassados e pronto a revigorar a sua comunidade.

O enterro

Muitos grupos enterram os defuntos perto de suas casas ou dentro delas e destroem-nas quando termina o luto. É mais comum sepulta-los junto da aldeia e à beira dos caminhos para que os vivos lhes rendam uma pequena homenagem, todas as vezes que passam, inclinando a cabeça, guardando silêncio ou depositando alguma oferta no túmulo.

Encontram-se cemitérios em paragens solitárias e bem defendidas nas florestas. São cemitérios familiares, embora possam pertencer ao grupo. Normalmente cada aldeia tem um cemitério comunitário.

Os povos pastores enterram o chefe de família reduzida no curram dos bois ou no lugar onde se acende a fogueira, dentro da cerca de paus que rodeia a casa, onde enterram também as mulheres. As crianças sepultam-nas no curram dos vitelos, os jovens, junto de sua casa, as raparigas iniciadas dentro da cerca onde guardam os pilões da farinha

Os especialistas da magia, bem como os caçadores e guerreiros, quando têm renome, são enterrados à beira dos caminhos muito freqüentados ou nas encruzilhadas, e sempre ao pé duma árvore para pendurar os seus instrumentos de trabalho, armas e troféus.

Normalmente cavam na terra sepulturas horizontais com quase dois metros de profundidade. No fundo e ao lado, abrem uma câmara mortuária onde colocam o defunto deitado ou de cócoras. Isolam-na com ramos. Quando enchem a sepultura, a terra não toca no defunto. A esta câmara podem vir visitá-lo os seus familiares antepassados, e ajuda-lo a completar o rito de passagem. Outros grupos cavam as sepulturas em forma circular porque colocam o cadáver de cócoras. Alguns enterram-nos de pé. Os quibala de Angola depositam os chefes sobre a rocha e cobrem-nos com pedras bem trabalhadas, formando um sarcófago retangular. Submetem os cadáveres a uma espécie de mumificação. Introduzem-lhes pela boca, com a ajuda dum funil, óleo de palma a ferver. Esta operação prolonga-se até que as vísceras desfeitas lhes saem pelo reto.

Os que de algum modo estiveram em contato com o cadáver, os que o transportaram e em geral os acompanhantes, depois do enterro tem de tomar banho num rio para “tirar o cheiro do morto” ou lavar as mãos. Deixam sobre a sepultura algum objeto: uma cabeça de boi, uma cabaça ou garrafa com água, mel, aguardente, alguns alimentos, um copo, uma taça, um prato, qualquer instrumento de trabalho, os troféus de caça.

Com certa periodicidade ali depositam alimento e bebida. Quando enterram uma pessoa, os alimentos ajudam-na a realizar a viagem para a sua nova mansão.

Não acreditam que os mortos venham a comer e a beber às suas sepulturas. Apenas tomam “a essência das oferendas”, o seu principio vital animador, agradecem a recordação dos seus descendentes e retribuem copiosamente. Pela comida sacrificada ou ofertada, destruída, o bantu liberta a “vida essencial” da oferenda, por ela entrar em comunhão vital e reafirma a vitalidade do oferente e do oferendado.Esta sacralização do alimento compreende-se a partir da ontologia bantu. Se a vida é o valor fundante e fundamental, manifesta-se em energia, força e fecundidade. Precisa permanentemente do alimento-força. Em última análise, o alimento está na base da estrutura ontológica de todos os seres criados. Por isso contém uma finalidade sacral e ele próprio, por ser essencialmente vida-força, é sagrado. Alimento e refeição trazem sempre uma recordação e uma concretização da ontologia e da religião.

Assim, quando o bantu deposita alimentos sobre as sepulturas realiza um ato religioso e vivencia a sua aprofunda fé. Os cemitérios e as sepulturas ocupam um lugar central na vida comunitária. Os antepassados estão neles presentes, deles brota a causalidade mística que fortifica ou debilita; através deles se robustece a solidariedade vertical. São também lugares que inspiram temor, onde o receio e o mistério permanecem.

O luto pelos mortos começa depois do enterro. As mulheres costumam pintar a cara com riscas pretas, cortam o cabelo ou soltam o penteado e até raspam todo o cabelo.

O luto obriga sobretudo os cônjuges dos falecidos, que têm que despojar-se de vestidos luxuosos e cobrir-se de panos humildes. É normal que as mulheres tragam o tronco descoberto, por que se troxessem um vestido normal, o defunto poderia reconhecê-las e atormentá-las. Aquilo em que tocar torna-se impuro e com o perigo do tabu.

A sua alimentação fica limitada e também os seus movimentos. Costumam ficar retirados em suas casas ou noutras construídas para este fim onde recebem as visitas dos familiares e a comida. Não podem cozinhar e as proibições sexuais são taxativas. Procuram evitar assim a contaminação impura do defunto, pois conservam, mais que qualquer outro, o “cheiro do morto”.

Em certos grupos, a viúva, antes de se unir a um novo marido, o que pode demorar de um a três anos, deve limpar a sua impureza relacionando-se sexualmente com um parente próximo do marido falecido. Noutros grupos, tem de seduzir um desconhecido, que ignore o tabu, e que carrega com a impureza da mulher. Se descobrir a cilada, o adivinho submetê-lo-á a ritos purificatórios.

Devem falar pouco, aparentar tristeza e chorar de vez em quando, até que o luto rigoroso termina com ritos purificatórios que começam com um banho lustral no rio. Entregam-lhes vestidos novos e os instrumentos para o trabalho. Costuma intervir o adivinho aspergindo-os.

Estes ritos conseguem “curar” os efeitos do contágio e fortificam a sua vitalidade talvez debilitada pelo contágio com o defunto. Simbolizam isso com uma fogueira acesa depois do banho, que “aquece” (revigora). Os banhos lustrais pertendem também assegurar à viúva um futuro casamento feliz.

Entre os Humbi, a água lustral leva cinco ingredientes: uma unha de galinha, casca e pedaços de certos arbustos que darão ventura ao novo casamento, pés duma erva cuja interpretação seria: ” O marido disse: fui-me embora; tu podes contrair novo matrimônio”. Por fim outra casca de árvore que significa: ” Esta pobre mulher teve pouca sorte, é preciso agora afugentar o mal que a atormentou”. A adivinha, que ritualiza a purificação, entrega-lhe pequenos enfeites e uma enxada. Marca com giz branco a viúva desnudada no peito, frente, ventre e braços. Derrama-lhe água lustral e lava-lhe com ela o corpo, até a língua. Por fim, bebe uns goles enquanto a adivinha vai pronunciando palavras mágicas que vivificam o rito. Depois simula um ato sexual.

Por fim, a adivinha recolhe toda a imundice do corpo, depois de lho esfregar com pós vegetais, amassa com isso uma bola que enterra longe das casas. O luto e os tabus ficaram sepultados. A viúva pode recomeçar a vida.

Os pais, filhos e irmãos também guardam luto, ainda que mais restritos na duração e exigências. Os viúvos e a comunidade não devem pronunciar o nome do falecido até terminar os ritos fúnebres. Como o bantu identifica o nome com a personalidade, conhecer e pronunciar o verdadeiro nome pode acionar uma influência mágica sobre a pessoa. O nome também pode contagiar o “cheiro do morto”. Outros grupos jamais pronunciam os seus nomes, ou então só depois de darem a um recém-nascido.

Fonte: Cultura Tradicional Banto – Raul Altuna

(*) Elizabeth B.Azevedo é graduada em Ciências Econômicas e pós-graduada em Matemática Financeira. Iniciada no candomblé em 1986, filha de Danguesu, neta de Saralandu, bisneta de Kianvulu e atualmente filha do Tumbalê Junçara-BA.

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